Introdução Em 04 de Setembro de 1974, os acionistas da Distribuidora Disco Comestíveis S/A e Pão de Açúcar, firmaram um documento ao qual deu-se o nome de Contrato Preliminar para Compra e Venda de Ações, com previsão para celebração de contrato definitivo em 30 (trinta) dias. Ocorre que, posteriormente, não houve consenso entre as partes, negando-se os acionistas a celebrar acordo definitivo, pretendendo a devolução de quantia depositada. Com a negativa da Pão de Açúcar em receber o valor e dos acionistas em entregarem as ações, foram propostas duas ações: (1) de consignação em pagamento, movida pelos acionistas, e (2) de adjudicação compulsória, movida pela Pão de Açúcar SA. A importância do estudo do referido caso para o presente curso de contratos é que, com as respectivas proposituras, entrou em debate as características do “Contrato Preliminar”, eis que o primeiro passo para o deslinde da lide seria a classificação do documento em contrato preliminar, quando teria força vinculante – tese defendida pela Pão de Açúcar SA; ou se se tratava de um documento meramente negocial, quando não haveria qualquer obrigação no cumprimento do disposto no documento – tese defendida pelos acionistas. O grande desafio apresentado à época era justamente de que a referida modalidade era ignorada pela legislação, não obstante sua prática reiterada, sendo tratada tão somente por doutrinadores pátrios e estrangeiros. O Caso em comento foi definitivamente decidido pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que julgou pela procedência da Ação Consignatória dos acionistas, entendendo que o documento celebrado não se tratava de Contrato Preliminar, mas tão somente de formalização de negociação, pelo que não poderia o tribunal obrigar a parte a celebrar o acordo, eis que, assim o fazendo, violaria a livre disposição da vontade das partes, elemento característico e basilar dos contratos. O presente trabalho abordará as conclusões do STF, posteriormente emitindo opiniões sobre as mesmas, e, ao fim, realizará uma análise do célebre documento firmado à luz do novo código civil. |
Análise das conclusões do STF
Em julgamento de Recurso Extraordinário quanto ao Caso Disco SA e Pão de Açúcar, o Ministro Relator apontou objetivamente o cerne da questão, qual seria: consensualizados os elementos essenciais de um contrato, mas postergando-se os elementos acidentais, em documento firmado pelas partes, se estaria caracterizado o contrato preliminar ou seria mero protocolo de intenções: “(…) a questão jurídica fundamental que se discute nestes autos é esta: se, no curso de negociações, as partes acordam sobre os elementos essenciais do contrato, deixando, porém, para momento posterior (o da celebração do contrato definitivo), a solução de questões relativas a elementos acidentais, e reduzem tudo isso a escrito, esse documento caracteriza um contrato preliminar (e, portanto, obrigatório para ambas), ou não passa, mesmo no que diz respeito aos pontos principais já considerados irretratáveis, de mera minuta (punctação), sem o caráter vinculante do contrato preliminar, e, consequentemente, insusceptível de adjudicação compulsória?”.
Com exceção do Ministro Leitão de Abreu, todos os demais ministros, em conformidade com o Relator entenderam que, por tratar-se de relação comercial, de acordo com a legislação vigente à época, um contrato, para ser considerado perfeito e acabado deveria haver acordo quanto a coisa, ao preço e às condições. Ou seja, deveria conter todos os elementos do contrato definitivo. Desta forma, não poderia ter sido o documento firmado considerado Contrato Preliminar, pois não havia consenso entre as partes quanto à todos os elementos do acordo, portanto, quanto às condições do negócio, bem como o preço a ser pago pelas ações, que seriam apurados durante os 30 dias, pelo que não poderia o juiz substituir as partes e preencher aquilo que não foi acordado entre as mesmas a fim de fazer cumprir o documento firmado. Sendo assim, entenderam que o referido documento tratava-se tão somente de protocolo de intenções, pelo que haveria uma vinculação eventual e provisória. O voto divergente do Ministro Leitão de Abreu entendeu que, muito embora não estivessem presentes todas as cláusulas do negócio definitivo, tratava-se de Contrato Preliminar e não apenas de mero protocolo de intenções, eis que as partes haviam acordado quanto às cláusulas essenciais, não havendo cláusulas não determinadas, mas tão somente determináveis por princípios objetivos já mencionados no referido documento. Ademais, fundamento sua decisão no comportamento das partes, pelo que podemos dizer, houve um reconhecimento de procedimento de acordo com a boa-fé e conduta esperada das partes envolvidas. |
Opinião sobre as conclusões do STF
Como bem ressaltou o Relator do Caso em comento, o cerne da questão para o deslinde seria estabelecer se o documento firmado entre as partes representa um contrato preliminar ou tão somente constituía em negociações preliminares, pelo que seria o documento apenas uma minuta, sem efeitos vinculantes. Inicialmente, se faz necessário a diferenciação entre Negociações Preliminares ou Acordos Provisórios e Contrato Preliminar. Durante as negociações, as partes produzem documentos que fixam elementos sobre os quais já há consenso entre as mesmas, vinculando-se ao que já fora decidido, muitas vezes celebrando acordos provisórios para já se vincular às condições estabelecidas, não havendo manifestação da vontade das partes em contratar, mas tão somente a vinculação aos termos de futuro acordo, caso celebrado. Tais acordos não podem ser confundidos com proposta e aceitação, marcos que caracterizam a formação do contrato. Em contrapartida, os contratos preliminares, de acordo com Caio Mário Pereira, são aqueles através dos quais as partes se comprometem a celebrar outro contrato posteriormente. Logo, seu objeto é o de contratar outro contrato, cujo objeto será o que se pretende obter através do mesmo. Por exemplo, podemos citar um acordo entre dois amigos que desejam contrair matrimônio entre si, caso permaneçam solteiros até determinada idade. O objeto deste contrato seria tão somente de celebrar outro “contrato”, qual seja, o matrimonial, que não aconteceria caso um dos dois resolvesse contrair matrimônio com terceiro antes do prazo estipulado por eles. O contrato preliminar, como conclui Orlando Gomes, “deve conter os elementos essenciais do contrato definitivo bem como os que podem influir na vontade e intenção de chegar a este“. Portanto, tendo em vista os conceitos apresentados, ao analisar o documento firmado entre as partes, há que se verificar que estavam presentes todos os elementos necessários para existência de um contrato preliminar, eis que, embora não tenham sido pormenorizadas todas as questões – o que se faz em um contrato definitivo – estavam ali consensualizados todos os elementos necessários para realização do negócio e futuro contrato, estando presentes todos os balizadores necessários para determinação de quaisquer discussões que poderiam ser aventadas. Ademais, como bem ressaltado pelo prolator do voto divergente, o Contrato Preliminar é claro quanto à declaração da vontade das partes de celebrar a compra e venda de ações, manifestando-se no primeiro item do documento: “concordam em vender, solidariamente, livre desembaraçadamente de quaisquer ônus, à segunda nomeada – aqui designada PRETENDENTE – a totalidade das ações que possuem e esta pretende adquirir a totalidade dessa ações, represetnando 97% (noventa e sete por cento) do capital da EMPRESA.” Assim sendo, estando expressamente declara a vontade de celebrar o negócio, ao qual se comprometeram, e estando dispostas as condições elementais da operação econômica que se pretende realizar, deixando para o contrato definitivo apenas aquilo que depende do desencadeamento da operação, claro está de que o documento se configura um contrato preliminar. |
Reflexão sobre as diferenças que teriam ocorrido caso a decisão tivesse sido tomada sob o Novo Código Civil
Ao contrário do código civil vigente à época da lide, o atual código civil dedicou um capítulo aos contratos preliminares, que deve conter todos os elementos essenciais do contrato definitivo, conforme disposição do Art. 462 do Código Civil de 2002: Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado. Portanto, mantém-se o entendimento de que o documento firmado pelas partes trata-se de contrato preliminar, nos termos do voto divergente. Contudo, tal dispositivo não garantiria a mudança na resolução dada pelo STF à questão em virtude de ter entendido o Relator de que o preço, bem como as condições sob as quais se daria a realização do negócio não estavam acordados entre as partes, pelo que, ainda assim, por constituírem requisitos essenciais ao contrato, poderia embasar a mesma posição adotada pelo Ministro. No que concerne à obrigatoriedade da celebração do contrato definitivo, objeto do contrato preliminar, o Art. 463 determina que só será exigida a celebração se não houver cláusula de arrependimento. No caso concreto, há previsão apenas para o arrependimento da adquirente e não dos acionistas. Neste caso, considerando-se que o contrato preliminar não foi cumprido, haveria duas possibilidades: (1) A exigência de celebração do contrato, nos termos do art. 463 do código civil; (2) O pedido de conversão em perdas e danos. Em ambos os casos, a pretensão de entrega das ações, que motivou a ação de adjudicação compulsória não encontraria guarida na legislação, podendo mover uma ação ordinária de obrigação de fazer ou de perdas e danos. Por fim, outro ponto que resta pacificado diante da legislação que entrou em vigor no ano de 2002 é a possibilidade do juiz preencher as lacunas, o que não era aceito pelos julgadores favoráveis à tese de que o documento firmado era um mero protocolo de intenções, conforme disposto no art. 464 do Código Civil de 2002: Art. 464. Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação. Portanto, não obstante o posicionamento da maioria dos ministros quanto à ausência de preço e condições, considerando o disposto no Código Civil de 2002, que modificou os parâmetros e consequências do Contrato Preliminar e o acordado entre as partes, tem-se que o resultado das ações poderia ser distinto do que foi, principalmente, ao se considerar que tais disposições derrogaram o Código Comercial, que fundamentou o posicionamento vencedor. |
Conclusão Considerando os novos parâmetros impostos pelo Código Civil de 2002, em detrimento do utilizado pelo Ministro Relator do caso em estudo, tem-se que o resultado haveria de ser diverso, eis que o documento firmado claramente ultrapassou os limites dos documentos de negociação, havendo expressa manifestação de vontade das partes em celebrar contrato de compra e venda de ações, pelo que, presentes os requisitos do contrato definitivo, o mesmo poderia ser convertido em perdas e danos ou seria a parte desistente obrigada a celebrar o contrato. O contrato preliminar firmado pelas partes, além de trazer expressamente disposta a vontade em celebrar a venda das ações, continha todos elementos essenciais à formação do contrato definitivo, conforme exigido pelo art. 462 do Código Civil. Diferente seria se as partes houvessem tão somente estabelecido algumas condições do acordo, sem manifestar expressa vontade de realizar o acordo, restando caracterizado as negociações preliminares ou até mesmo os contratos de negociação. A coisa que se pretendia vender foi devidamente qualificado, o preço, fora estimado e foram inclusos critérios objetivos para aferição exata do mesmo, pelo que poderia o juiz suprir a parte desistente neste item. Desta forma, excetuando-se o posicionamento vencedor quanto à ausência de elemento essencial do contrato definitivo, conclui-se que o posicionamento mais adequado, no caso concreto e à luz da nova legislação, seria o voto vencido, que dado que, considerando a existência de um prévio acordo com elementos essenciais do contrato definitivo, conferiu ao documento em questão a natureza de contrato preliminar, pelo que deveria ser executado. Logo, a única garantia de alteração seria o fundamento da decisão, que não mais poderia se valer do art. 191 do Código Comercial para análise do documento, mas sim do Código Civil de 2002, que se manifestou expressamente quanto aos requisitos do contrato preliminar. |
Referências bibliográficas
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